sábado, 21 de abril de 2007



Vaga-Lume


Estou sozinha com a poeira da estrada. Respiro fundo mais solidão que é pra me acostumar com ela e sentir-lhe o alento. Estive contemplando o céu durante horas, dias, anos. As estrelas me olharam como se eu fosse uma flor pequenina e tola. A lua veio algumas vezes mostrar sua intimidade com a terra e eu era um animalzinho triste. Muitas coisas se passaram e eu fiquei aqui parada olhando, tentando entender. Vento vem, calor vai, chuva para as borboletas. Aninharam-se as pombas cinzentas, passou por mim um cão de olhar cabisbaixo e um cavalo sem dono. Cena de abandono. Quando o arco íris tomou meu tempo sorri e falei sozinha. Sentei numa pedra grande e boa, pedra generosa e maternal. Talvez de longe se ouvisse o acelerar do meu coração quando os carcarás pensaram que eu era uma ave morta. Nunca morri tanto. Sozinha. Quando não queria estar. Voltei para o mundo e esqueci na estrada o meu lenço de chorar e meus enfeites de alma (aqueles, dos quais te falei ao entardecer de um dia qualquer). Alma que não existia quando você chegou e que ficou na estrada no meio da poeira vermelha da terra viva. Não tenho lógica. Não tenho pai, não tenho mãe. Sou uma folha seca voando pelo vão da noite pura. Virgem. Ensolarada. Ramos de flores balançam em meus aforismos de menina. Os vermes comem a terra por baixo das tocas dos ratos. Só a borboleta voa e, ali, a folha muda, surda, funda, oriunda de uma árvore seca, retorcida, negra. Seca, seca. Um incêndio passou, deixou tudo seco, tudo aparentemente morto, mas amanhã vem o verdume, quando a chuva molhar as raízes todas, mães, vivas, absurdamente vivas. Corre o tempo. Passam as horas, modifica-se o espaço. Não ouço badaladas, não há igrejas. Não passa ninguém. É só o vento que me diz palavras de vento redemoinhando, hora misturadas, hora combinadas. Lembrei-me: vem, me tome como uma flor que se arranca da planta na beira da estrada e cheire meu perfume de antes. Aquele perfume. Acaricie minhas pétalas para que elas se tornem mais macias e brilhantes, mais intensas na cor e no olor. Ou me tome feito mulher, que se pronuncia, que te devora, que te aniquila e que te recria, sujo de desejos singelos, pervertidos segredos. Descubra meu nome e assombre a minha dor, reconheça-te em mim. Chame os vaga-lumes para que a noite seja respingada de luz. Não se aborreça se um dia eu lhe roubar o sono por horas a fio a te investigar os detalhes, as pequenas diferenças que existem de você entre todos os outros. Os poros da sua pele macia, nova, forte, minha. Os pelos. Os vincos da vida. As mãos, os riscos, as doces infantilidades. Quando eu espalhar o suor seu nas suas costas e nelas me encostar pra sentir-lhe a umidade, seja bom comigo. Quando eu cheirar a sua nuca e seus cabelos, e afagá-los como quem molha a mão na nascente de um rio, seja um rio perene. Me desfolho como seca árvore do cerrado. Esqueci. Ah, a poeira da estrada!

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